Para curar qualquer dor
Para curar
qualquer dor, como se cura qualquer ressaca: sonrisal limão, eno de laranja e
muita água. Um banho gelado, que seja um balde de água fria nas ideias. As
ideias, presas num emaranhado delas mesmas. A cabeça que, confusa, pede pra
rever a cena, reouvir a notícia, porque ainda não assimilou tudo muito
bem.
Para curar qualquer dor, grite, xingue, esbraveje, mande à merda. Ainda que silenciosamente. Sinta o gosto amargo na boca, aquele que seca e dá nojo, aquele que te faz desejar nunca ter chegado perto daquilo que deu origem à sua dor. Você sente nojo é de você. Você grita consigo, se xinga, esbraveja, se manda à merda. Vai à merda. Fica na merda.
Para curar qualquer dor, grite, xingue, esbraveje, mande à merda. Ainda que silenciosamente. Sinta o gosto amargo na boca, aquele que seca e dá nojo, aquele que te faz desejar nunca ter chegado perto daquilo que deu origem à sua dor. Você sente nojo é de você. Você grita consigo, se xinga, esbraveja, se manda à merda. Vai à merda. Fica na merda.
Para curar
qualquer dor, uma cerveja gelada. Um maço de cigarros, uma roda de amigos. Uma
cachaça forte, numa mesa de bar. Bebida-analgésico.
Bebida-perda-de-memória-recente. Olhando as bolinhas de gás que sobem naquele
amarelo-ouro brilhante, tão bonito.. Para curar qualquer dor, não olhe pro céu,
não é hora. Deixe que o primeiro clarear do dia te avise quando é tempo de
voltar pra casa. Sozinho, na madrugada amiga, acolhedora, na noite com seus
sortilégios. As ruas e lugares esvaziando, sobrando você, sobrando aqueles que
saíram para curar suas dores. Sobrando somente a dor. Vinte e quatro cervejas,
para curar qualquer dor.
Para curar
qualquer dor, não tente entender. Não busque explicações satisfatórias,
comprovações científicas, não procure no dicionário. Não procure em gavetas,
portas, armários, lojas ou salões. Não está na janela, nem dentro da geladeira.
Não queira entender. Não espere respostas na astrologia, não pense que vai cair
do céu. E se só Deus sabe, não se daria o trabalho de te contar. Não apele pra
macumba. Não fique remoendo.
Para curar
qualquer dor, engula o choro. Seja homem. Vá pro canto se esconder, caso as
lágrimas teimosas cismem em cair. Ninguém pode ver. Respire fundo, engula a
seco, vai descer rasgando, mas se dê por satisfeito. Ou, pelos menos, finja.
Finja simpatia. Force sorrisos, e se esforce para que saiam algo próximo a
naturais. Isso, continue rindo esse sorriso quase natural pendurado no rosto,
para curar qualquer dor. Seja fingidor.
Para curar
qualquer dor, não pare. Não olhe pros lados, não tem ninguém. Não olhe pra trás.
Como bicicleta, que só se equilibra em movimento, não pare. Não pense. Não pare
para pensar.
Para curar
qualquer dor, basta fechar os olhos, abrir os ouvidos, abrir o coração. Deixe o
que é bom entrar como inspiração. Deixe a música penetrar como água, pelos poros
da pele. Se esqueça, se largue, se abandone em algum lugar ou instante. Solte
suas amarras, se solte. Permita-se. Dance. Para curar qualquer dor, a bossa de
um repique e um pandeiro. Distraia-se no movimento, nos instrumentos, nos
sorrisos, viaje no som.
Para curar
qualquer dor, viaje. Pra longe, ou bem longe, ou pra perto, ou sem sair do
lugar. Liberte o pensamento. Deixe o vento descabelar ou a brisa fazer
cosquinha. Pode abrir os olhos já, e enxergar quanto o há na sua frente, não
antes de olhar o quanto há dentro de você. O universo inteiro lá fora, o
infinito particular aí dentro. Uma dor não é nada perto disso, nem você. Tá tudo
tão perto... você é pequeno, pequenininho, insignificante. Você some no
incomensurável. Suma.
Para curar
qualquer dor, chore. Chore muito, abra o berreiro, bote pra fora a sua dor. Para
curá-la, tem de haver ferida sangrando, tem que chorar. Chore tanto, até que
você fique sem voz. Chore tanto, até que você fique fraco. Se dilacere, rasgue a
roupa, arranque os cabelos. Chore alto, forte, intenso. Se despedace. Soluce.
Fique com o rosto inchado. Fique com sono.
Para curar
qualquer dor, durma. Durma feito criança. Durma feito pedra. Descanse, relaxe.
Um banho quente, antes disso, para afagar o coração. Deite o rosto no
travesseiro, e não se preocupe, amanhã você já não vai mais molhá-lo. Foi só um
susto, criança. Se faça cafuné, se nine, e durma. Durma bem, durma com os anjos.
Ao acordar, você vai lembrar que, como tudo na vida, as alegrias, o dinheiro, o
ônibus, o tempo, os amores, as pessoas, tudo, tudo passa. Ao acordar, toda dor
passa, toda dor se esquece. Você se torna mais forte para poder doer mais,
depois, poder curar qualquer coisa depois.
E, de
repente, eu abri os olhos, e ela não estava mais lá. Nem pra se despedir. A dor
foi embora sem falar comigo. Chegou de susto, mas foi embora de mansinho, em
absoluto silêncio.
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